Células reprogramadas: a revolução brasileira contra o câncer

Nos laboratórios de Ribeirão Preto, no interior paulista, cientistas estão conduzindo um dos maiores estudos clínicos já realizados no Brasil com uma terapia que pode mudar o futuro do tratamento do câncer: as células CAR-T. A tecnologia, que modifica células de defesa do próprio paciente para que elas ataquem tumores, está sendo testada em 81 pessoas com leucemia ou linfoma que não responderam à quimioterapia ou radioterapia.

O tratamento, até pouco tempo disponível apenas em países ricos e com alto custo, começa a ganhar força no país com produção 100% nacional. E o mais importante: com a perspectiva de chegar ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Como funciona a terapia com células CAR-T

A terapia CAR-T (do inglês, Chimeric Antigen Receptor T-cell) consiste em retirar linfócitos T – um tipo de célula de defesa – do paciente, modificá-los geneticamente em laboratório para que reconheçam e ataquem as células cancerígenas, e depois reintroduzi-los no organismo. Essas células passam a funcionar como uma espécie de “radar biológico” altamente especializado.

No caso dos pacientes com leucemia e linfoma tratados no estudo, os linfócitos T são programados para detectar a proteína CD19, encontrada nas células B doentes. Ao encontrá-las, os CAR-T liberam substâncias que eliminam o tumor.

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Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

O centro pioneiro na América Latina

Esse processo complexo está sendo realizado no Nutera-RP, o Núcleo de Terapia Avançada de Ribeirão Preto, ligado à USP. Inaugurado com investimento de R$ 200 milhões, o centro conta com tecnologia de ponta e 16 salas limpas com rigorosos protocolos de biossegurança. Ali, os linfócitos T são separados, modificados com um vírus inativado e cultivados por cerca de 10 dias até atingirem a dose necessária para o tratamento.

O trabalho é liderado pelos hematologistas Rodrigo Calado e Diego Clé, e faz parte do ensaio clínico Carthedrall, que recebeu R$ 100 milhões do Ministério da Saúde.

Quem pode receber o tratamento?

Por enquanto, a terapia está sendo testada em pacientes com leucemia linfoblástica aguda e linfoma não Hodgkin refratários – ou seja, que não responderam aos tratamentos convencionais, como quimioterapia, radioterapia ou mesmo transplante de medula óssea.

Ao todo, 81 pacientes devem ser tratados até 2026 em cinco hospitais: Beneficência Portuguesa (SP), Hospital das Clínicas da USP, Hospital de Clínicas de Ribeirão Preto (USP), Sírio-Libanês e Unicamp.

Resultados promissores

Antes do ensaio Carthedrall, a equipe de Ribeirão Preto já havia tratado 20 pacientes de forma compassiva – ou seja, quando não há mais opções terapêuticas. Os resultados, publicados na revista Bone Marrow Transplantation em 2024, mostraram regressão da doença em 75% dos casos. Em alguns pacientes, os CAR-T eliminaram completamente o câncer por até 10 meses após o tratamento.

Apesar do sucesso, alguns efeitos colaterais foram registrados, como a síndrome de liberação de citocinas, um tipo de inflamação causada pela ativação do sistema imunológico. No entanto, na maioria dos casos, os sintomas foram leves a moderados.

O custo da esperança

Atualmente, os tratamentos com células CAR-T comerciais no Brasil custam entre R$ 2 milhões e R$ 2,7 milhões por paciente – valor inacessível para a maioria da população. Além disso, esses medicamentos não estão disponíveis no SUS e só podem ser obtidos por planos de saúde ou ações judiciais.

A boa notícia é que o Nutera conseguiu desenvolver uma versão nacional com custo estimado em R$ 350 mil, o que abre caminho para sua incorporação no SUS. “Nosso objetivo é oferecer um tratamento acessível e eficaz”, afirma Rodrigo Calado.

tipo de câncer mais fácil de tratar

Iniciativas em outras regiões do país

Além do Nutera, outras instituições brasileiras estão desenvolvendo versões próprias das CAR-T. No Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, o biomédico Martín Bonamino lidera um projeto que utiliza uma técnica alternativa, sem o uso de vírus, chamada de “transposon”. Essa abordagem reduz os custos de produção e já mostrou bons resultados em testes com camundongos.

A tecnologia também está sendo transferida para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que pretende montar laboratórios-contêineres para fabricar células CAR-T em diferentes regiões do Brasil. O objetivo é levar o tratamento a mais pacientes e ampliar a capacidade nacional.

Parcerias internacionais e futuro promissor

O Inca firmou uma parceria com o Hospital Infantil da Filadélfia, nos Estados Unidos – o mesmo que tratou a primeira criança curada com CAR-T. A instituição está repassando a tecnologia para produção de células modificadas em sistema semiautomatizado, o que pode acelerar a produção e o início de novos testes clínicos no Brasil.

Outro grupo promissor está no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Liderado pelos hematologistas Nelson Hamerschlak e Lucila Kerbauy, o projeto testa uma versão automatizada da terapia em pacientes com linfoma e leucemia. Até agora, 13 pessoas já foram tratadas.

tratamento contra o cancer alternativo

A demanda brasileira

O Brasil registra anualmente cerca de 12 mil novos casos de linfoma e 11,5 mil de leucemia, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Estima-se que pelo menos 3.500 desses pacientes poderiam se beneficiar com a terapia CAR-T.

Hoje, o Nutera consegue tratar 100 pessoas por ano, mas tem capacidade de aumentar esse número para 600 com ajustes. A expectativa é que a união dos projetos nacionais torne possível levar a terapia a todos que precisam.

O desafio da incorporação no SUS

Para que a terapia esteja disponível na rede pública, será necessário que o Carthedrall comprove a segurança e a eficácia do tratamento. Após a conclusão do estudo, prevista para 2026, os dados serão submetidos à Anvisa. Caso aprovado, o próximo passo será a análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

“O objetivo final é que o tratamento esteja acessível a todos os brasileiros que precisam”, afirma Diego Clé, coordenador do Nutera.

Ciência brasileira na vanguarda contra o câncer

A terapia com células CAR-T representa uma revolução na oncologia. E o que torna essa história ainda mais significativa é o fato de que o Brasil está desenvolvendo sua própria tecnologia, com equipes de pesquisadores altamente qualificados e apoio de instituições públicas.

Se tudo correr como planejado, em breve será possível oferecer aos pacientes do SUS um tratamento de ponta contra o câncer, que antes era privilégio de poucos. É a ciência brasileira mostrando que, com investimento e perseverança, é possível transformar vidas.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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